Fogo, a ilha em forma de vulcão
“Este lugar é nosso!” imaginei os habitantes de Chã das Caldeiras a gritar ao planeta, que parecia querer levá-los dali, trazendo cá para fora o que guardava há milhões de anos. Foram confrontados com duas opções. Levantar e debandar… ou espetar a bandeira mais fundo e mostrar ao planeta que, com toda a sua imponência, não fora ainda forte o suficiente para os expulsar.
Em 2014 o coração da terra rugiu, como gosta de rugir. Rugiu em milhares de sítios à volta do globo, e um desses sítios foi na Ilha do Fogo, em Cabo Verde. As entranhas deste nosso sustento planetário não aguentaram e quiseram, também elas, um pouco de luz. Os habitantes de Chã das Caldeiras, na cratera do vulcão, viram, sem poderem fazer nada, a lava tomar-lhes as casas, as estradas e as vinhas, roubando alguns milhares de litros anuais à produção do peculiar vinho que ali nascia.
Esse palpitar do coração do nosso planeta com esta subsequente hemorragia não retirou o palpitar do coração de nenhum dos estoicos habitantes de tão aparentemente inóspito lugar e, resilientes, ficaram.
O meu caminho começou em casa. Um ano preso neste jardim à beira-mar plantado começava a ser demasiado, e eu precisava de sonhar um pouco. Assim, apesar de só ter partido dois meses depois, a minha viagem começou quando uma noite, sentado no meu sofá, encontrei um voo barato para Cabo Verde. A partir desse momento, havia alturas em que só a minha pele andava por terras lusas, os meus pensamentos num arquipélago ainda desconhecido. Tão desconhecido que as minhas divagações eram vagas e difusas. Ia para onde, fazer o quê? Antes de ir, se me dissessem que Cabo Verde tinha só três ilhas, eu teria dito “Okay.” Porque sabia pouco, muito pouco… E não poderia prever este dia.
Comecei cá em baixo, na simpática cidade de São Filipe, que me mostrara, pela primeira vez na minha VIDA, uma praia de areia preta, a toda a volta da ilha, como a ponta da saia de uma alegre dançarina. Um manto escuro mas brilhante que talvez só ali acrescentasse beleza, em vez de a retirar. Passeara pelas suas areias enquanto via, ao longe, vinte e oito pessoas a jogar um estranho futebol de catorze para cada lado, e aventurava-me depois pelas vielas da cidade, onde pessoas sentadas à porta de casa me cumprimentavam, cada uma quase escolhendo uma qualquer língua europeia para o fazer. “Ça vá?”
Os prédios e as casas escolhiam as cores mais vivas da paleta e eu não podia deixar de notar os extremos: ora edifícios que abraçavam totalmente o passar do seu tempo e rompiam ligações com a tinta que os vestia, ora outros que, vaidosos, não toleravam a menor insolência dos anos que lhes passavam, deixando sempre uma imagem incólume de quem sabe ainda ter muito para dar. Mas, por mais que apreciasse andar por ali, sem rumo, sentia que a capital era apenas o prefácio da história que tinha para ali viver. Em qualquer lugar havia uma rua que subia, e eu tinha de subir tudo, até ao fim.
Esperava-me o Pico do Fogo, o pai daquela ilha.
Encontrei o Papinha, o meu guia para este dia, e saímos de São Filipe de manhã. A Hiace esforçava-se estrada acima, parando de vez em quando para deixar passageiros ou para entregar as encomendas das pessoas mais deslocadas.
Quando chegámos à cratera, fui envolto por uma estranha noção de surrealidade. Aquela lava que invadira novamente, milhares de anos depois, a cratera, cristalizara-se de uma forma bruta, e a sua falta de cuidado quase pareceria feia, não me oferecesse uma distinta sensação de estar a presenciar algo único. Se nem sempre a unicidade é sinónimo de um sorriso nos nossos olhos, neste caso era um entre vários componentes que me deixavam a sentir-me bem por ali estar.
De um lado a Bordeira, bem lá em cima, protegia-nos não sabia eu do quê, do outro o Pico do Fogo, dizendo-me para não ter medo. Atrás de mim, o sítio de onde viera. À minha frente, para onde iria, no dia seguinte, numa caminhada de horas até voltar à ponta da saia da senhora bailarina, materializada na cidade de Mosteiros.
Fomos deixar a mochila à pensão do José Doce, uma dúzia de bangalós feitos da lava que se via por todo o lado, e iniciámos a caminhada, primeiro em plano, passando por outros albergues, de vez em quando por pequenas macieiras de pequenas maçãs, que colhíamos. Apesar do vulcão me ter convidado várias vezes, de várias formas, nunca houvera a assunção de que seria fácil.
Navegámos as suas areias pretas ziguezagueando e eu esforçava-me por não parar, pelo menos até me aperceber que não precisava de competir comigo mesmo, e podia parar de vez em quando. Podia sentar-me e olhar para trás. Lá em baixo a planície vulcânica estava rodeada em três partes por montes como aquele que eu agora subia mas, de um lado, tinha como que um acesso eterno ao horizonte, o seu chão sendo substituído por uma camada de nuvens densas e bonitas.
E eu ali, ofegante, a ver aquilo, contente por ali estar.
O topo trouxe consigo a satisfação de saber que conseguira. Estava no ponto mais alto da ilha e, dali, só não via o que não me cabia na imaginação. Contornámo-lo e descemos depois, a correr, sem nos preocuparmos em ter as meias cheias daqueles pequenos piroclastos que pisávamos.
Acabámos a tarde sentados no Café da Sofia, a beber uma cerveja, cá fora, enquanto o sol nos deixava e nos entregava uma escuridão geralmente indesejada, totalmente aceite ali. Pois ali a escuridão trazia consigo um silêncio que, ao invés de sepulcral, era um templo dentro do qual podíamos apreciar a serenidade de… estar ali.
Por António Pedro Moreira / Pedro On The Road